“Qualquer pessoa pode escrever como Manolo Rivas
Ou como Suso de Toro
Eu próprio som capaz de escrever como Ferrim
ou como Manuel Maria”
explicava Chema ao público
em aquela charla-colóquio na biblioteca municipal da Veiga
Tinha publicados três livros de poesia
e um romance
Mas a sua profissom era a de camionista
O seu verdadeiro orgulho era aquele trailer
de 15 toneladas
“O dificil é escrever coma mim”
continuava a dizer
“colhendo o bolígrafo com a esquerda
o caderno em riba do volante
e circulando
a cem por hora
por essas autoestradas alemás do demo”
Obrigatoriamente contra o inferno
e os pecados
construim a tua igreja à tua imagem e semelhança
como era o teu desejo
e berrei bem forte os mandamentos
todos
que tu me impugeras
do primeiro ao último
sem esquecer nengum
sem acrescentar nem modificar nada
porque nom era permitido interpretar as tuas palavras
Propaguei a tua mensagem
que saía da minha boca
nas ruas nos templos e nos palácios
e mostrei-lhes a luz
como tu me dixeras
Carreguei com a cruz de ser teu filho
e pronunciei sempre com respeito e veneraçom o teu nome
para que pudesse ser santificado
para que aprendessem também a falar contigo
e para que tivessem o justo e necessário medo
Figem assim a tua vontade
Mas às vezes
sem pretendê-lo
escuitei as suas palavras
lim os seus livros
e reparei nas suas vidas
Por isso decidim desertar
Nom é que me cansara
ou que me cegara o brilho da carne
como tu dixeche a quem te quijo ouvir
Foi que nom suportava saber-me morto
saber-me já morto
mesmo antes do sacrifício
a que me conduzias
prisioneiro dum fado maldito
de que nom podia afastar-me
Figem-no
porque sabia que essa era a maneira definitiva
de nom cair nunca
na tentaçom
e libertar-me do mal
Amei
Quando se nega o dia a escalar o corpo dos altos edifícios
mostrando fragmentos de estrelas proibidas
onde a penas existem feridas que se esquecem
porque nos arrodean os poldros perdidos da brétema
Alta cidade tinguida pola névoa
Na cidade chove em amarelo
umha água fresca que me encelma a língua
e umha música lonxana esvaendo-se
Desde a opaca pátina do balcom pechado
no abissal fundo dos oceanos
venhem lentas as fías dos remorsos
No meio da rua
grosseira inculta e pouco delicada
em um jardin que tarde ou cedo há engolir o asfalto
memória do que queremos esquecer
ainda há algo a reclamar-nos
Som tempos de olhar a chuva
invernía no lento fluír dos almanaques
Será a emoçom quanto vale nesta terra?
De cada cidade agroma o aroma dum mistério
fronte ao mar equivocado
Como sei que ti e eu nos queremos
[2] O título é de Santiago Jaureguizar e os versos de: Celso Álvarez Cáccamo, Luisa Villalta, Miro Villar, Anxo Angueira, Xohana Torres, Fran Alonso, Antón Avilés de Taramancos, Xosé Luís Santos Cabanas, Yolanda Castaño, José Alberte Corral Iglesias, Ana Romani, Emma Couceiro, Lois Pereiro, Pilar Pallarés, Marta Dacosta, X. Antón L. Dobao, Eduardo Estévez, Carlos Negro, Estíbaliz Espinosa, Alberte Momán, Franck Meyer, Maria Lado.
Olho para as leitugas
enquanto boto água nas fendas da memória
e co sacho golpeio docemente
cada umha das palavras que rodeiam esta casa
“Parabéns”
berram os gatos todos os gatos do mundo
enquanto sigo a cair polo precipício
e oito galinhas cantam
a coro
a melodia das casas habitadas
Um cam dorme diante da porta
aberta
Lentamente
esqueço as horas
os minutos os segundos
até chegar a esta pequena sensaçom de calor
Talvez todo seja arrastar palavras
dum lado para outro
sem cessar
até que alguém escuite
e entom ficar em silêncio
Para sempre
Eis quem pensa que a derrota é umha vitória
e nom só nom pactua a rendiçom
mas entrega incondicionalmente as suas armas
os seus exércitos
na procura dumha salvaçom in extremis
que lhe assegure um lugar à direita do pai
ou à esquerda
tanto tem
porque o importante é saírem na foto
Enterrou no meio da leira num burato bem fundo a distáncia e a memória E nesse mesmo lugar plantou as vides o vinho soubo-lhe sempre a nostalgia e era muito apreciado nos locais de fado Nom lho queriam na cooperativa
Deverias caminhar sobre as águas dixo-lhe aquela calorosa tarde a voz interior E intentou-no Intentou-no repetidas vezes até que o socorrista lhe chamou a atençom por andar a fazer o parvo nas piscinas municipais
Som as oito
É de dia
Baixa a neve das montanhas
e umha pequena voz
no interior do exterior
repete incessantemente
palavras que sabem a despedidas
a memórias quase esquecidas
a velhas palavras que em algum momento fôrom bonitas
Como te chamas?
pergunta o ruído dum carro que atravessa a janela
ou que parece que atravessa a janela
“Julio Cortazar”
responde com voz segura o livro da Maga
em cima da mesa da cozinha
O oráculo pensou
“Isto cai polo seu próprio peso”
Nom
estava
ante
as
torres
gémeas
Estava na rua do Hórreo
e de fundo ouviam-se
as vozes duns parlamentares
a debaterem
sobre
a) a conveniência
b) a pertinência
c) a importáncia
de aplicar a normativa ISO 40/30006
nas caixas de bolachas
Saída[3]
Nom há mais butano amor
Quanto tempo tarda em acabar-se todo
Um nom sabe bem que sentimento
cria quem esquece o parto, assente a pele e tensa o corpo
A procedência da nossa pele é anterior ao anterior
Contornando o jardim botánico
sempre há umha princesa
porque as laranjas dos reis eram pequenas e doces
Os teus olhos nom olham o que te bica
Assim che medrou no peito um tambor de buxo
Estou como escrita amor no fundo dos versos fluidos
[3] Versos de Fran Alonso, Yolanda Castaño, Emma Couceiro, Marta Dacosta, Antón Dobao, Estíbaliz Espinosa, Eduardo Estévez, Maria Lado, Franck Meyer, Carlos Negro e Luisa Villalta.
Sabiam bem que o seu
-se havia qualquer cousa que pudesse ser nomeada como
o seu-
era na prática
impossível
Nem táctica nem estrategicamente
existia aquilo que ambos os dous reconheciam
instintivamente
como o seu
Ela era eminentemente lírica
e ele obsessivamente prosaico
Ele substantivizava acçons
e ela nom fazia mais que adjectivar sentimentos
Ela na procura incessante de umha cálida sensaçom
e ele sempre a fugir de qualquer indício de doçura
Porém
conseguiram
nas escassas ocassions em que coincidiam
no tempo e no espaço
caminhar juntos sem tropeçarem
e mesmo podiam estar vários segundos
e até minutos
diante de uns cafés ou umhas cervejas
sem falar
em silêncio
A evitar cuidadosamente as inecessárias palavras
Sabiam bem
que umha mínima parte do outro
era cousa sua
e que a soma de tudo isso
era aquilo que
inexplicavelmente
dotava de conteúdo o seu
-se havia qualquer cousa que pudesse ser nomeada como
o seu-
Confundim-me
ou enganárom-me
Eu queria solicitar um dos postos de músico
Acordeom
guitarra
ou bateria
Tanto me tinha um como outro
Eu nom tenho nem ideia de música
e penso que só umha vez vim um acordeom a menos de 100 metros
Mas pensei que isso teria possibilidades
Possibilidades de fugir
digo
Estar aí
com o acordeom com a guitarra com a bateria
sem chamar a atençom
e em qualquer momento
zás!
Fugir
Escapar
Evadir-me
isso é
Exactamente isso
Evadir-me
Eu escuitara em algum lado que a vida do músico
polo geral
é daquela maneira
já se sabe
mais relaxada
menos rígida
sem tanta vigiláncia e controlo
e pensei que numha dessas
entre notas partituras e semicolcheias
que eu nom sabia nem o que eram
e continuo sem saber
numha dessas
aproveitava eu
e...
A evasom
A escapada
A fugida
Eu por isso queria solicitar um dos postos de músico
Saber
o que se di saber
de música nom sei grande cousa
Mas nom som parvo
e podia aprender
Também aprendim a manejar a vassoira
a esfregar as janelas do quarto andar
que só abrem para fora e ninguém se atrevia
e a levar a roupa à lavandaria
que som o único de toda a minha secçom
a quem lhe deixam levar a roupa à lavandaria
Também podia aprender algo de música
E por isso fum pedir os papéis para solicitar um posto
Mas confundírom-me
ou enganei-me
e preenchim os papéis para o posto de operário jardineiro
E cá estou
sem poder sair destes muros
tam cinzentos
arrancando as ervas más que medram
tam verdes
nos jardins deste centro
tam psiquiátrico
Agora que conheces os adjectivos da dor
di-me que substantivo empregarás
para definir o silêncio de umha explosom
Agora que conheces as regras da subordinaçom
e manejas com soltura a retórica
explica-nos que temos que fazer com a verdade
Agora que caducárom todas as metáforas
e estám proibidas as metonímias e as elipses
convencede-nos de que a terra é plana e o sol gira sobre ela
Também quigem ser um viageiro
aventureiro
tal vez guerrilheiro
e por isso um dia decidim
marchar à serra
À Serra
de Outes
que eu era um principiante
e nom era questom de começar lançando-se à Sierra Maestra
À Serra de Outes
dixem-lhe ao condutor do autocarro
Tam arriscado fum que aguardei o autocarro na estrada de Nóia
e nom na estaçom dos autocarros