e2-e4 (Brancas)
No mesmo dia em que o cura Martim Branco caiu abatido no assento da igreja pelas tropas do marechal Soult, Toríbio Mouteira espirrava de frio na toca sombria. Não soube dos combates nem do valor que os seus paisanos puseram na luta com os franceses em Escornabois, caminho de Cobelas, porque padecia o ataque purulento das febres pútridas e porque por causa da neve levava dias sem poder sair daquele tufo de solidão onde o entretimento exclusivo era espantar a humidade penetrante com a queima de ramalhos secos e da folhagem verde das tábuas.
Como estava nos últimos de Fevereiro estranhou não apresentar-se nenhum mandado de Sandiás dos que costumavam levar as sanguessugas remediadoras com as que depois se faziam sangrias em Castela. Tinha uma estragada saca cheia delas que, com certeza, ia perder-se.
A Toríbio Mouteira vinha de morrer o seu companheiro inseparável com que compartilhava a pestilência da cova, um javali apalermado que quase afogou havia dois anos de não ser porque ele levava naquele tempo o látego de vidoeiro com que caçava as rãs; desta vez tinha-o posto na boca da besta enxotada, tal que fosse outro batráquio, o cibalho da vida. Mas melhor teria sido ao porco aquela morte súbita que a traça de humidade que lhe rilhou as entranhas até a vertigem de pião terminar por pôr-lhe um extravio nos olhos desnorteados.
Havia quatro dias que Toríbio Mouteira tinha comido a última galinha d’ água e apenas lhe restava a esperança cega de as febres e a neve escamparem para sair caçar e tirar da cabeça os pensamentos canibais. Não, a ideia de comer o javali equivalia a comer um amigo. Isso não podia fazê-lo, jamais –-prometeu-se com um nó sanguíneo na garganta¾. Apreciava o defunto mas também sabia que o aumento da fome e o seu jeito adoecido de furar os muros da consciência podia terminar por neutralizar a sua lealdade ao mamífero.
Toríbio Mouteira pertencia a uma das famílias sobranceiras da província. O pai, Constante Mouteira, um dos advogados de mais fama da província, fê-lo sair de casa porque o apanhou fodendo com uma das criadas portuguesas, facto que Toríbio Mouteira aproveitou para se fazer com uma liberdade que avançou junto com a sua demência. Primeiramente, levou Sozinha de Tourém com ele e moraram num casebre de fungos de casa nas margens da lagoa. Começaram a escavar a seguir os indícios de furna e os ditados teimosos de que ali, perto da lagoa, tinham de encontrar os escombros da cidade de Antioquia na qual, segundo diziam, tinha nascido Santa Marinha de Águas Santas e, convocados por uma ilusão magnética, mudaram o casebre pela toca e trabalharam com ardida paixão durante nove meses até darem com uma moeda antiga que multiplicou as suas miras arqueológicas. Prolongaram a cova debaixo da terra além do imaginável e ao cabo dos meses, quase sem darem por isso, chegaram à conclusão de que as rochas que rifaram na escavação porfiada, e que milagrosamente cegavam o passo da lama, parcelavam a divisão do que tinha sido -–e que voltaria ser¾ uma casa. Mas Sozinha de Tourém emprenhou num daqueles encontros anfíbios nos quais mais do que prazer procurava-se o calor mútuo dos corpos e fugiu para a sua pátria logo de ver que o senhorito do que tinha namorado já nem caçava patos nem semeava nos terrenos lamacentos roubados à lagoa; só teimava no mesmo, instigado por uma inércia labiríntica.
A ele não o mancou a solidão. Continuava a sachar a alma à lagoa e poucos dias antes das nevadas e da morte do javali o achado de um prato dourado daria crédito à sua fé transtornada. Enquanto examinava o objecto valioso com ar de complacência, sentiu como uma clandestina alucinação desatendia os chamados do cérebro e quase caiu inconsciente à par do fogo. As febres não fizeram outra coisa que deter momentaneamente as prospecções. Diferiu o desejo de continuar a cavar porque os músculos estavam esmorecidos, mas em nenhum momento, nem sequer quando a frouxidão o levava a um delírio concêntrico, pensou na possibilidade de a vida não alcançar até encontrar o tesouro cantado.
A neve tinha obstruído a entrada e formado uma gelosia de grades de sincelo que despedia um frio metálico. Numa daquelas peças de pedra tinha acumulada lenha, estevas e estilhas suficientes como para passar dois invernos inteiros, mas o problema não era esse, antes o da comida; não quedava nada para levar à boca e, apesar de ele lutar o que pôde, a fome terminou por dobrar a sua consciência e em pouco tempo era ele o que brandia a faca num impulso alheio, com os dentes reganhados e os olhos fechados, e despedaçava o javali com uma violência de massacre. Enquanto desafogava terríveis berros pela limpeza da sua alma, assou um pedaço de carne no fogo e quando o mordeu sentiu o imparável impacto de que encetava uma extremidade do seu próprio corpo. Nesse refrigério parricida grelou-lhe outra vez a vida; apartou a carne toda junto dos sincelos rectilíneos e recuperou-se rapidamente das febres pútridas.
A neve alentava um frio húmido que topou com a sua fervura militante porque rapidamente, alheio aos problemas do seu cativeiro, Toríbio Mouteira voltou ao trabalho e prosseguiu com a escavação crivadora sem deter-se apenas para repor forças com o lombo reparador do finado. A água nascia em borbotões segundo avançava e mais do que picar o que fazia era remexer na lama. Assim, enquanto um sol marçal se encarregava de derreter as neves que tinham borrado A Límia e alguns pássaros rivalizavam afinados chilros ao longe, Toríbio Mouteira passou vários dias, do javali ao labor e do labor ao javali até que, por fim, quando já a água lhe dava pelo umbigo, a ponta do pico bateu em algo consistente que veio a ser um crânio esmagado que não estava só.
O Bieito examina a prosa minuciosamente e cisma sobre quem pôde ter escrito este capítulo que remove as molas do seu orgulho. Sente uma necessidade insurrecta de actualizar os seus dados e utilizar as palavras que ponham as coisas no seu lugar.
¾Que tal está?
¾Bastante bem.
Acende um cigarro e vê como a sua mulher lhe arrebata os fólios e se perde pelo corredor.
O Bieito reconhece a habilidade matreira do rival que, longe de começar pela infância do protagonista ou outra pasagem irrelevante da sua vida adolescente, consome uma das partes mais isoladas do esqueleto que Manoel Mouteira lhes tinha facilitado e incorpora a acertada ideia do javali, animal do qual não lembra ter ouvido falar ao editor. Apesar das dificuldades, o Bieito assume o repto e consagra o dia a repassar livros que contêm dados sobre o século XIX na Galiza até que, exausto pelas páginas que o transportam da Guerra da Independência à perda de Cuba, decide sentar-se face à sua velha Underwood para aplacar o seu voraz apetite pela escrita.