Onde comprou o livro: na livraria Palavra Perduda, em Santiago de Compostela.
O que mais a atraiu na sua leitura: já conhecia o autor, principalmente através da poesia. O resumo do assunto na contracapa despertou-me a vontade de saber como Fran Alonso o abordava através da narrativa.
Uma frase do livro: "(…) Agora estou seguro de que hei vencer, aínda que só miañe e beba leite, porque sei que a tolemia é un sombreiro que se pon e se quita cando un quere e se sabe controlar". pag.167.
O livro é das Edicións Xerais, Vigo, 2001
A loucura é um chapéu, ou de como perceber que as palavras nem sempre nos podem salvar.
Fran Alonso, poeta e prosador galego, acaba de lançar este Males de Cabeza, uma obra que traça a ténue linha do esquecimento por entre as ruas e as fugas de uma vida marcada pelo compasso dos dias iguais.
Depois de Subversións, livro que recolhe a sua obra poética, acrescentando-lhe um poemário original (que dá o nome ao livro), Fran volta às livrarias galegas (e bem poderia chegar às portuguesas, que já vai sendo tempo de nos conhecermos melhor uns aos outros) pela mão das Edicións Xerais e volta a surpreender-nos pelo modo como talha, a golpe de lâmina, a longa esfinge de um quotidiano que se centra claramente na Galiza, mas que incorpora sem medo a visão cosmopolita e pungente que caracteriza muita da produção literária galega actual.
Os relatos de situações quotidianas impregnadas de maior ou menor grau de desespero são cortados pela presença de uma primeira pessoa que identificamos com o louco. São vinte interrupções pontuais ("A tolemia é un sombreiro [1-20]") que nos deixam aproximar lentamente da lógica possível numa mente perturbada. Até que, já próximos do fim, somos confrontados com a hipótese de aquele louco, o que mais afectivamente nos fala com a sentimentalidade que alguma literatura imprimiu à figura do louco, ser o mais insuspeito de todos os homens sãos.
A loucura, sabemo-lo agora, insinua-se nos gestos de um quotidiano sempre igual e a rapariguinha que se torna anoréctica devido à obsessão da magreza ("Coma o Pato Donald") não deve mais ao peso subordinante desse quotidiano do que a mulher que, desesperada, entra todos os dias num comboio que lhe possibilitaria a sua fuga, abandonando-o em seguida, todos os dias também ("A señora Lola").
Alguns episódios constituem interessantes comentários à situação social galega: em "Desviación de chamada" assistimos a uma conversa telefónica que se poderá qualificar de hilariante e que deixará incrédulos os leitores menos familiarizados com a questão sociolinguística da Galiza. Em "A señora Lola", o narrador recupera o quadro já esboçado em Tortillas para os obreiros, livro de poemas que o autor apresentou em 1996 e que constitui, creio firmemente, um exemplo claro da bem conseguida incorporação à poesia de um topos como o quotidiano, tão marcante da sociedade ocidental do final do século XX. No episódio "Estou tolo", o tema do afastamento da terra com os respectivos custos no plano emocional, um tema que a literatura galega, ao longo do século XX, tratou como poucas, é esboçado a partir dos antípodas da terra galega, em Marrocos: "Porque eu teño azul ata o sangue. Ou tiña azul ata o sangue. Coma os peixes dos mares galegos" (p.158).
Males de cabeza dá-nos a ler o peso da insatisfação, da solidão, da infinita caminhada que todos os dias empreendemos atrás do cumprimento das tarefas e combinações que nos levarão a acordar no dia seguinte um pouco mais cansados e a re-empreender a mesma lenta caminhada. E oferece-nos, também, uma história; ou muitas, dependendo da forma como olharmos para tudo isto e do modo como a loucura nos afecta a relação com as letras. A história que temos constitui-se pelo princípio da polaroid (não, não é uma expressão consagrada por nenhum crítico, que eu saiba…), ou seja, a narrativa assenta na elaboração de instantâneos mais ou menos demorados (conforme o tempo que o narrador lhes permite a exposição à luz) onde nos damos conta de que, por trás de cada segundo, uma enormidade de horas e dias e ansiedades se aloja como uma doença, uma dor infundada, a imagem da loucura.
Perto do final do livro, em Santiago de Compostela, o correspondente de um qualquer jornal faz a cobertura noticiosa de um incêndio, ocorrido num manicómio. Os nós imbricados desta história são finalmente desfeitos mas o cerco está novamente montado. A loucura que percorria o espaço intramuros do estabelecimento que ardeu não era diferente da que marca os espíritos que, na rua, discutem e disputam as culpas e os crimes. A loucura que se guarda em sítios próprios não é diferente de nós. Ou, nas palavras do narrador, "Coma eles, habitantes do mundo exterior, eu nom son máis que un pobre neurótico que espernexa, náufrago nun océano de aceite, graxento e inmenso, ó que chamamos psiquiátrico (…). Sei que hai un anxo na miña mesa. "(p.131).